O Governo angolano gasta por ano 15 biliões de kwanzas (38,8 milhões de euros) no tratamento de 1.621 doentes que fazem hemodiálise, ou seja cerca de 12% do orçamento da Saúde, informou hoje a ministra da Saúde de Angola.
Sílvia Lutucuta falava à imprensa no final da sessão da Assembleia Nacional, que aprovou hoje, na generalidade, a Proposta de Lei sobre Transplantes de Tecidos, Células e Órgãos Humanos, depois de 15 anos da sua preparação.
A governante angolana disse que anualmente são alocados cerca de 12% do orçamento destinado à Saúde para o tratamento de doentes com hemodiálise, salientando que um transplante, dependendo do tipo de necessidade e as condições, pode custar entre 50.000 a 200.000 dólares (44 mil a 176 mil euros).
“Mas um doente por ano custa muito mais do que isso. Nós com os 1.621 doentes, que por ano fazem hemodiálise, são 15 biliões de kwanzas”, exemplificou a ministra.
Na apresentação da proposta de lei aos deputados, Sílvia Lutucuta disse que o diploma legal visa essencialmente acompanhar a evolução da ciência, da tecnologia, posta à disposição da humanidade para o tratamento de pacientes através de transplantes, mas sobretudo leva em consideração o cada vez maior número de doentes com insuficiência renal no país.
Segundo a ministra, estes doentes são diariamente submetidos, e de forma provisória, ao tratamento de diálise, podendo beneficiar de outro tipo de terapia de substituição da função renal, nomeadamente o transplante renal.
“O aumento de casos de doentes no território nacional com patologias hemato-oncológicas, linfomas, leucemias, anemias de células falciformes, aplasias medular, cujo único tratamento electivo consiste no transplante do progenitor”, configura igualmente uma preocupação para as autoridades, que pode ser aliviada com o início de transplantes no país.
“Actualmente a mortalidade causada por estas doenças em Angola é preocupante e os custos relacionados com a evacuação e tratamento no exterior são elevados, impossibilitando, na maioria dos casos, o seu tratamento”, realçou a ministra.
A titular da pasta da Saúde em Angola apontou ainda como objectivos o recurso aos transplantes para a reabilitação visual das cicatrizes de córnea, decorrente de doença infecciosa, particularmente na infância, nomeadamente o sarampo, desnutrição, úlceras infecciosas da córnea, traumatismos oculares, entre outras, que ameaçam de forma permanente a visão ou o globo ocular, sendo presentemente umas principais causas de evacuação em oftalmologia.
Sílvia Lutucuta referiu que já existem em Angola médicos nacionais treinados para fazer transplantes, não apenas o renal, mas de outros tipos como da medula óssea, do fígado, entre outros.
“Já temos alguns profissionais com experiência em histocompatibilidade, porque só vamos ter um laboratório a nível nacional para testes de histocompatibilidade, primeiro, para ver se há compatibilidade entre dador e receptor e, por outro lado, também para fazer o seguimento do doente e avaliar e monitorar o doente, para evitar a rejeição do órgão”, frisou.
De acordo com a governante angolana, as estatísticas mundiais indicam que em cada milhão de habitantes, 10 mil pessoas todos os anos entram em tratamento dialítico, o que exportando para a realidade angolana seriam para os cerca de 30 milhões de habitantes, 30 mil novos casos por ano.
Além dos problemas renais, Angola sofre com outra doença muito comum entre a população, designadamente a anemia de células falciformees.
“A estimativa é de que 1% da população tem a forma mais grave de anemia de células falciformes, e estamos também a falar numa estimativa duma taxa de natalidade tão elevada. No nosso seio, também milhares de crianças nascem com anemia e células falciformes e com complicações muito graves e que em algumas circunstâncias o único tratamento para estas crianças, e até curativo, seria mesmo o transplante”, sublinhou.
A ministra disse que acresce-se a este quando, a existência de algumas doenças no país que colocam as pessoas numa situação de maior risco de evoluir para a insuficiência renal, nomeadamente a hipertensão arterial, a diabetes e doenças infecciosas, como a malária.
Um centro de referência nacional vai ser criado para os transplantes, disse a ministra, avisando que não é permitida a sua realização em qualquer unidade hospitalar.
“Estamos a trabalhar no sentido de termos a curto prazo condições para a testagem de todos os aspectos à volta da histocompatibilidade e isto é um processo”, salientou.
A ministra anunciou a inauguração, segunda-feira, no Lubango, província da Huíla, de um centro de hemodiálise, um dos cinco que o Governo pretende criar a curto e médio prazo em outras regiões do país. Do universo de cerca de 30.000 pacientes apenas 1.621 fazem hemodiálise.
E como estão as dívidas a Portugal?
A dívida de Angola com tratamento médico de cidadãos angolanos em Portugal rondava em Fevereiro de 2018 os cinco milhões de dólares, segundo revelou o então embaixador angolano em Lisboa. Marcos Barrica disse que, por essa razão, os doentes em tratamento em Portugal passam por dificuldades. No dia 2 de Agosto de 2016 o Folha 8 escreveu: “Doentes angolanos em Lisboa passam fome”.
“Há dificuldades reconhecidas, que não são novas, periodicamente temos vindo a reportar e estamos a acompanhar. Há dificuldades, temos que reconhecer isso”, afirmou Marcos Barrica, em declarações à Rádio Nacional de Angola.
Segundo o embaixador, essa questão “está em vias de resolução”, porquanto “há um esforço muito grande por parte do Estado angolano para resolver a dívida”.
“E tem vindo a ser resolvida, essa divida é repartida em várias áreas, não só na área clínica, mas também em todos os domínios conexos, por exemplo, o alojamento dos doentes e acompanhantes, estão nas pensões e às vezes em casas particulares, o transporte e o subsídio que recebem mensalmente, tudo isto configura-se então na dívida que se tem”, explicou o diplomata angolano.
Marcos Barrica informou ainda que o Ministério da Saúde angolano tinha enviado uma delegação, dirigida pela Junta Nacional de Saúde, para fazer uma radiografia da situação do sector da saúde.
“Estamos crentes que com o trabalho feito e com as conclusões recolhidas poderão sim estar em melhores condições para a solução que se espera seja encontrada”, frisou.
Anteriormente, o ex-ministro da Saúde de Angola, Luís Gomes Sambo, afirmou que o Estado angolano estava a resolver o problema da dívida que contraiu com países para onde são transportados doentes, entre os quais Portugal, mas sem avançar o valor da mesma.
“Confirmo que temos evacuado muitos doentes e ultrapassado a capacidade orçamental, estamos neste momento a resolver o problema da dívida, estamos a pagar a dívida, ao mesmo tempo que estamos a diminuir o número de doentes evacuados para esses países”, disse então Luís Gomes Sambo.
Agosto de 2016
A este propósito recorde-se o que o Folha 8 publicou, no dia 2 de Agosto de 2016, sob o título “Doentes angolanos em Lisboa passam fome”:
“Quase duzentos angolanos que estão em Portugal para tratamento médico reclamam da falta de transferência de subsídios do Governo. Por falta de pagamento, as pensões onde estão albergados decidiram cortar nas refeições.
Cerca de duas centenas de doentes angolanos, com junta médica para tratamento em Portugal, enfrentam sérias dificuldades devido aos atrasos nas transferências dos subsídios e ajudas de custo a cargo do Governo de Angola.
Fontes contactadas pela DW África falaram inclusive de pensões, onde estão albergados, que decidiram cortar nas refeições devido ao incumprimento do acordo por parte do Ministério da Saúde angolano. É que a baixa do preço do petróleo no mercado internacional tem obrigado o executivo de Luanda a fortes restrições financeiras.
A Embaixada de Angola em Lisboa, dirigida por Marcos Barrica, tem feito tudo ao seu alcance para minorar as dificuldades. Uma comissão enviada recentemente para Lisboa foi avaliar a situação e levar propostas para a tutela responsável.
João Catembe (nome fictício) está há sensivelmente cinco anos em Lisboa. Veio doente para Portugal em Fevereiro de 2011, por meio de Junta Médica, por causa de um problema renal. Continua por isso a fazer hemodiálise. Com pouco mais de 300 euros de subsídio, confessa que enfrenta muitas dificuldades.
“Continuamos com os valores de 20 anos atrás. De maneira que com 300 euros, hoje em dia, ninguém consegue fazer nada. O Governo diz que não tem dinheiro para [nos] pagar; quer dizer, eles assumiram-nos aqui em Portugal e agora dizem que não têm dinheiro. As pessoas estão à deriva”, desabafa Catembe.
A falta de recursos tem dificultado a vida dos doentes. Muitos deles vivem em péssimas condições – adianta Catembe que há cerca de nove meses não recebe dinheiro da Junta Médica por dificuldades de transferência de divisas em Angola.
Com dívida acumulada de empréstimos que fez para sobreviver, Catembe diz que tem sido ajudado por alguns amigos e familiares. Mas é preciso pagar o quarto onde dorme e ajudar nas despesas com alimentação. “Estou a pagar o quarto a 250 euros, porque é com casa de banho privativa”.
Falta de pagamento afecta a alimentação
Cada dia é uma incógnita, acrescenta ele, reconhecendo que há situações mais críticas entre os cerca de 200 doentes que Angola enviou para Portugal para tratamento. Uma boa parte está alojada em residenciais em Lisboa, no âmbito de um protocolo com o Governo de Luanda. Em algumas pensões, ocorrem situações de carência alimentar grave que afectam inclusive pessoas transplantadas. Os doentes estavam limitados à sopa diária, conta ele.
“Os donos das pensões também estão a querer correr com os doentes porque dizem que há atrasos de milhões [nos pagamentos]. A gente não percebe como que o Governo continua a mandar doentes para cá, se os que estão cá, eles não conseguem aguentar”.
O Ministério da Saúde de Angola tem dívida elevada para com as referidas pensões, entre as quais a Pensão Luanda e Alvalade, em Lisboa. Face a isso, a administração das pensões cortou na alimentação diária aos doentes – revela a nossa fonte.
No entanto, com o apoio da Embaixada de Angola, tem sido possível melhorar a dieta alimentar nos últimos dias, realidade que os doentes não confirmam.
Contactado o Embaixador de Angola, Marcos Barrica, mandou o seu adido de imprensa pronunciar-se sobre o assunto. Estêvão Alberto reconhece que a situação é difícil e diz que a Embaixada está a fazer tudo, por via do seu sector de saúde, para minorar as dificuldades.
“Tentar colher as preocupações destes mesmos doentes e em função desta recolha e da análise, remetê-las aos órgãos centrais para se encontrar mecanismos e caminhos viáveis para a resolução destas mesmas dificuldades, designadamente na área dos seus subsídios que registam algum atraso em razão de todas estas dificuldades que o país está neste momento a viver”, esclarece Estêvão Alberto.
O porta-voz lembrou que Angola evacuava doentes para várias partes, nomeadamente para Portugal e África do Sul. O motivo é o país não dispor de capacidade técnica para atender todos os casos em função da sua complexidade, explicou.
Doentes têm medo de denunciar
Entretanto, os visados consideram que o problema maior estava na actuação do chefe do sector da saúde do Consulado de Angola, situado em Alcântara, que não respeita o estatuto dos doentes.
Nuno Marcelo de Oliveira era criticado, por exemplo, por ter decidido suspender o subsídio e dar altas administrativas sem consentimento ou conhecimento do médico que segue alguns dos pacientes. O certo é que os visados não falam à imprensa por recearem intimidação e represálias, confirmou Catembe.
“Os doentes sentem-se intimidados porque o próprio director do sector tem mandado indivíduos fazer investigação nas pensões a perguntar “quem é que está de acordo com a Comissão”; “quem reclamar eu mando embora porque ninguém aqui está acima de mim, nem o Embaixador”. Isto são palavras dos próprios funcionários lá dentro do sector”, conta.
Em reacção, Estêvão Alberto respondeu que não há nenhum doente, ainda em fase de tratamento, que tenha sido enviado para Luanda, de forma compulsiva. “Esta decisão é de inteira responsabilidade do médico que acompanha o doente, “em função do diagnóstico e do seu relatório final, endossado ao sector da saúde da Embaixada”, sublinhou.
“Os doentes que voltam para Luanda são aqueles em que os médicos que os acompanham determinam o fim do seu tratamento aqui em Portugal. Só em função disso é que o sector da saúde da Embaixada é chamado a pronunciar-se e criar as condições para que esse doente regresse ao país”, explicou.
Abordado na altura pela DW África, o presidente da Junta Nacional de Saúde, Augusto Lourenço, negou dar mais explicações por não ter mandato para falar à imprensa. Ele sublinhou que sua função é fazer um levantamento dos problemas existentes para que sejam encontradas “boas soluções”.
Folha 8 com Lusa